O VENDEDOR DO MAR
"O Sentido da Vida é que ela termina.
Mesmo no caso de a esperança ser
muito pequena, não tenho
o direito de não usá-la."
Franz Kafka
Pelo tempo de meu nascimento, havia na província um velho homem que, perambulando de aldeia em aldeia, anunciava a todos os ares ser ele o vendedor do mar. Talvez por jamais haver encontrado ninguém digno ou rico o suficiente para pagar pelo excelente produto, habituei-me desde pequeno a vê-lo passar de tempos em tempos, carregando sempre o mesmo discurso, trazendo sempre, da boca aos ventos, a maravilha da sua oferta.
Precisamente no dia do meu aniversário de dez anos, enquanto brincávamos eu e meus amigos nas colinas altas, eis que o ouço dizer pela primeira vez o valor que desejava obter pelo mar. Era uma soma vultosa! Considerando, todavia, a extensão do objeto, impossível haver preço mais exatamente justo.
Embora não houvesse ali ninguém além de nós, crianças e incompletas, vendo o velho homem bradar acerca do mar àqueles que desejassem alcançá-lo, por incalculável quantia e extrema honradez, pareceu-me que aquilo fora dito tão somente a mim – e talvez fosse eu, dentre todos os presentes, seu único ouvinte. Sabia que, no final, sem falta, se eu o merecesse, tomaria das mãos do homem o mar, que mo daria de bom grado, pelo preço justo. Sentia como se suas Palavras fossem dirigidas exclusivamente a mim, trazidas pelo mesmo vento que agitava as ondas.
Assim, a partir daí, sempre que avistava o mar do topo das colinas altas, sempre que nele me banhava ou sobre ele navegava nos pequenos barcos pesqueiros, quando avistava as ondas assombrosas e altivas rebentarem-se na areia diante dos meus pés, ou quando degustava um saboroso peixe ou fruto do mar – que descia por minha boca com um gosto morno e áspero –, invadia-me a ânsia pelo dia em que tudo aquilo poderia ser chamado claramente de meu; ao mesmo tempo, agitava-se em mim a firmeza da necessidade de diversas obrigações que deveria me impor se quisesse receber, das mãos do vendedor do mar, a posse daquela existência.
Cresci então fascinado por aquela oferta; ansioso para tomar sobre mim os encargos desta fantástica conquista.
Não tive filhos; jamais me casei; não permiti que um instante sequer me desviasse do meu projeto, ou melhor, para ser mais correto e sincero, fui aprendendo a permitir cada vez menos que eventos e distrações me desviassem deste caminho que reina sobre mim, desconhecido por todos.
Tornei-me rico e bondoso. Sei que todos me considerariam um louco se soubessem da intenção final de cada ação de toda a minha vida e que eles vêem em minha prosperidade o fim mesmo de meus desejos e atos. Tenho também consciência de que, caso soubessem de minhas inclinações mais íntimas sem que duvidassem da estabilidade de minha sanidade, considerariam uma loucura – com certeza – as freqüentes esmolas que distribuo caridosamente entre os pobres de nossa aldeia.
Quem sabe a loucura fez de mim um homem bom! E isto, a eles, seria incompreensível: uma vez que aquilo que desejo é tão grande e de tão caro valor, não seriam um desperdício estes gestos generosos? Contudo, estou convicto de que, para adquirir o meu sonho, terei de apresentar uma vida digna e sensata ao vendedor do mar, pois apenas uma alma nobre pode possuir algo tão imenso.
Com o tempo, tornei-me também reflexivo. Aprendi a admirar o mar, os homens, a criação e a terra, mas sobretudo o mar. Ouvi silenciosamente o homem do mar todas as vezes que por aqui passou, sem jamais lhe dirigir uma Palavra sequer. Acredito seriamente que, por não haver ninguém corajoso ou abençoado o suficiente para assumir as responsabilidades de seu pedido, eu sempre fui o único a escutá-lo.
Agora, avançado em idade e já no fim dos meus dias, como não tive filhos, não tenho dúvidas de que terei de inspirar em alguém o desejo pelo mar antes de minha morte, quer eu consiga ou não obtê-lo, pois, apesar de rico e bondoso, não sei se os sou o bastante aos olhos do vendedor do mar.
Quando tudo estiver então completado, quando tiver por fim em minhas mãos todo o necessário para apresentar-me a ele como um grande e sublime homem, sei que ele virá até mim, me dará o mar e tomará tudo o que tenho, legando-me o peso do que foi sua posse. Sei que ele não pode cessar sua busca. Entretanto, temo que, antes da chegada desse instante, eu já não me conte entre os vivos.