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Como Robert e Ned destruíram Westeros - a ordem em Game of Thrones



Game of Thrones é uma das séries mais loucas de todos os tempos e atrai milhões de pessoas doidas para ver os caras matando e morrendo – principalmente morrendo – na luta insana pelo Trono de Ferro. Tem muito tempo que eu quero escrever uns textos sobre uma das melhores séries de todos os tempos. Agora chegou a hora.


Minha idéia para escrever sobre Game of Thrones aumentou desde que li este texto do professor Carlos Ramalhete sobre a série. Comparando Guerra dos Tronos com O Senhor dos Anéis, Ramalhete diz que no universo das Crônicas do Gelo e Fogo não há aquela estabilidade perene que dá sentido a tudo dentro das instabilidades momentâneas da história. Para ele, o mundo de Westeros é um mundo onde “a única estabilidade é uma estabilidade essencial, uma instabilidade que é a sua própria essência” (sic).


Infelizmente, ele parece esquecer duas coisas. No universo de O Senhor dos Anéis todos os personagens são uma alegoria perfeita de uma virtude humana. Samwise É a Amizade; Gandalf É a Sabedoria; Frodo É o Poder da Vontade humana na batalha contra o Mal. Ali todos são construídos em um nível mais alto do que em Game of Thrones. Em GoT todos os personagens são simplesmente humanos comuns. E a escolha de cada tipo de narrativa limita a narrativa a um caminho específico. Mas isso é assunto para outro texto.


É certo que todos os homens vivem em uma sociedade alicerçada em uma ordem. Por isso, nenhuma representação artística da sociedade vai conseguir ser construída em uma estrutura diferente daquela que é a própria realidade humana. O mundo das Crônicas de Gelo e Fogo possuiria uma ordem mesmo que o seu autor não quisesse. Meu problema é que, ao contrário do que todo mundo pensa, o mundo de Westeros é sim um mundo com uma ordem específica. E George Martin sabe disso.


Mapa do mundo de Westeros


A ordem de Westeros vem de duas fontes. A primeira é a ordem religiosa, que vem daquela consciência antiga e cosmológica de que diferentes deuses podem conviver com poderes diferentes. Os deuses são, ao mesmo tempo, representantes das disputas humanas e das forças cósmicas, convivendo pacificamente com a força de outros deuses de acordo com as necessidades de cada evento. Era assim que egípcios, sumérios, fenícios, babilônios e companhia limitada viviam quando a ordem religiosa se confundia com a ordem do cosmos e da política. Hórus e Zeus podiam se digladiar ou se confundir um com o outro de acordo com a conveniência do momento histórico.


É por isso que em Westeros os deuses do Norte e os Sete convivem pacificamente, mas um deus como R´hllor é visto como uma possibilidade de desestabilizar a zorra toda porque ele veio de fora. De fora da ordem vigente. Mesmo assim, pode acontecer que em um momento ou outro R´hllor seja integrado na ordem de Westeros, como um dia foi reconhecido como um ser divino legítimo o Deus Afogado das Ilhas de Ferro.


Há nas Crônicas de Gelo e Fogo uma força transcendente agindo na história e tentando ajudar os homens em suas escolhas e buscando direcionar as ações. Isso fica evidente logo no começo.


No prólogo de Game of Thrones, primeiro livro da série, três rangers da Patrulha da Noite perseguem um grupo de selvagens do outro lado da Muralha. De repente, eles percebem que os selvagens estão mortos... e esses mortos, junto com os White Walkers (sim, eles são diferentes), começam a atacá-los.


George Martin chama os Outros claramente de demônios.


No capítulo seguinte, Ned Stark se encontra com o único sobrevivente desse ataque demoníaco. Um ranger havia escapado e, assustado pra cacete, se torna um desertor. A punição para quem foge do seu serviço na Muralha é a morte. E, como ele foi encontrado em Winterfell, Ned será seu juiz e carrasco.


Ao colocar Ned e o desertor lado a lado, os deuses estão avisando de onde vem o perigo. É o primeiro recado divino sobre como enfrentar a fúria demoníaca que está a caminho.


Mas eles não param por aí. Depois de fazer rolar a cabeça do pobre coitado, Ned e seus filhos encontram uma loba gigante, o símbolo da casa Stark, morta com um chifre de cervo na garganta. A batalha entre os dois animais foi sangrenta, mas milagrosamente a loba conseguiu dar a luz a seis filhotes saudáveis.


A primeira idéia de Ned é matar os filhotes. Mas Jon entendeu o recado. “Os deuses enviaram um lobo gigante para cada filho do senhor de Winterfell”.




Mas acontece que nem Jon nem Ned entendem a mensagem real por trás desse evento. A loba gigante foi morta pelo chifre do cervo (Starks, mantenham distância dos Baratheons, dizem os deuses). E a loba colocou no mundo um lobinho para cada herdeiro Stark - até para o bastardo. O sinal não poderia ser mais claro: como uma matilha, a casa Winterfell precisa permanecer unida e se preparar para o perigo real que vem do Norte. Aliar-se mais uma vez aos Cervos só trará morte e destruição.


Em Game of Thrones, a força divina está desde o começo por perto, mandando o seu recado, mas parece que só as pessoas simples e comuns conseguem ouví-la. É como no diálogo entre Bran e Osha, quando eles se encontram no bosque sagrado.


Bran está fazendo suas orações, e quase sem fé pede aos deuses para que Robb não saia de Winterfell. Osha aparece e pergunta se ele consegue ouvir os deuses e ele diz “é só o vento batendo nas folhas”. Ao que Osha responde: “quem você pensa que envia o vento, se não os deuses?”.


Uma história fantástica não pode ser escrita sem uma intervenção direta do transcendente de vez em quando. A narrativa fantástica força constantemente o autor a colocar aqui e ali um deus ex machina. O vento nas folhas, o envio de uma matilha de lobos, o milagroso nascimento de dragões. Mesmo que Martin não consiga se livrar desse paganismo moderno que nada mais é do que uma releitura tosca das antigas religiões cosmológicas, os deuses estão lá e falam com os homens. Nem mesmo um autor como Martin consegue se livrar da necessidade humana de encontrar a intervenção divina na estrutura da ordem.


Mas os homens são tontos e desatentos. Ned é burro pra cacete e, cego por um moralismo inócuo que ele confunde com honra, não consegue compreender o sinal do transcendente. Ao invés de manter os lobos unidos e enfrentar o Mal que vem do Norte, ele dispersa toda a sua família e parte para o Sul.


O caminho escolhido por Eddard Stark, contrário ao apelo divino, custou a sua cabeça – ainda que ele tenha se mantido fiel a sua moral durante toda trajetória. Mas vocês já perceberam como a honra de Ned nunca o ajuda a resolver os problemas práticos que ele mesmo se propõe a enfrentar? O apego a uma honra assim é só um afago na alma. Sem reivindicar para si honra nenhuma, Jaime Lannister é muito mais nobre ao matar Aerys, salvar Porto Real da destruição e guardar o seu ato heróico em segredo – ainda que todo mundo ache que ele é um escroto filho da puta.



Ao invés de ouvir a mensagem dos deuses, Ned ouve a voz do cervo e parte com Robert para Porto Real. Mais uma vez, Ned e Robert ferrarão com a história de Westeros e as chances do reino ter um tempo de paz.


E é aí que entra a segunda fonte de ordem.


Em Westeros e nas Nove Cidades Livres, todo mundo quer ser o legítimo representante da Antiga Valíria. A fonte do poder político de Porto Real deriva de ter ou não um legítimo representante da ordem que havia em Valíria, da lembrança de uma sociedade quase perfeita. Bem ou mal, essa fonte estava representada nos Targaryens e Robert, por mais que tentasse, jamais conseguiu ser um poder político legítimo.


As ruínas da Antiga Valíria


Se Robert e Ned tivessem esperado a morte do Louco Rei Aerys, a dinastia dos Targaryens continuaria através de um homem completamente diferente do seu pai: Rhaegar. Eles poderiam deixar o destino do reino e dos reis nas mãos dos deuses.


Mas não. Robert prefere começar sua rebelião contra os Targaryens e se sente até aliviado quando vê a dinastia se acabando pouco a pouco, quando crianças são estraçalhadas para completar a legitimidade do seu novo reinado.


E por que Robert e Ned forçaram sua rebelião até o fim? Pela paz de Westeros, pelo fim do reinado de um homem louco? Claro que não. Robert e Ned se rebelaram por ódio e vingança.


Aerys matou o pai e o irmão de Ned e Rhaegar raptou sua irmã, o grande amor de Robert Baratheon. A rebelião de Robert foi levada até o fim para vingar a morte de dois homens que não voltariam à vida e para resgatar Lyanna, mas nem isso eles conseguiram. Lyanna morreu e tudo o que sobrou foi aquela vitória insignificante com gosto de derrota.


Mas falta de legitimidade da rebelião de Robert Baratheon e do seu reinado fica realmente claro quando Martin escreve sobre a rebelião de Balon Greyjoy.


Pouco depois de Robert conquistar o Trono de Ferro, o senhor das Ilhas de Ferro se rebela e tenta reconquistar a independência do seu reino. As Ilhas de Ferro são um pequeno arquipélago onde praticamente todos os homens vivem da pilhagem e da pesca. As Ilhas de Ferro têm uma religião específica, um sistema próprio de eleger seus governantes, e cada capitão é considerado um rei em próprio navio. A cultura daquele povo é completamente diferente de qualquer experiência vivida em outra parte de Westeros.


Ninguém nas Ilhas de Ferro se sente parte dos Sete Reinos e, a cada nova oportunidade, seu povo entra em rebelião para reconquistar sua autonomia.


Basta observar como Theon Greyjoy é tido como um estranho por todo mundo nas Ilhas de Ferro e como ele é diferente de todo mundo em Pyke por ter crescido longe de sua terra. Theon parece tanto com um homem de ferro quanto a Madre Teresa parece com a Carla Perez.


A mensagem de Martin ao colocar a revolta dos Greyjoy dentro do reinado de Robert é clara: qual rebelião possui a verdadeira legitimidade, aquela que busca o desafio da vingança para aplacar a própria ira ou aquela que busca restaurar a ordem de uma cultura subjugada?


Juntos, Robert e Ned destruíram Westeros. Com o reinado de um homem sem legitimidade e sem vocação para governar, a esperança numa ordem verdadeira se perde e tudo o que resta é a disputa sangrenta e desordenada pelo poder. Se um homem de uma casa nobre, mas não real, pôde usurpar o trono, qualquer um pode fazê-lo.


E, com a destruição de Westeros, eles destruíram as próprias vidas.


Robert não era um rei; Robert era um soldado. Mais de uma vez ele confessa a Ned: “às vezes eu desejo que tivéssemos perdido no Tridente. Não, não de verdade, mas...” e “mais de uma vez sonhei em renunciar a coroa. Embarcar para as Cidades Livres com meu cavalo e meu martelo, passar o tempo fazendo guerra e entre as vadias”. A vocação de Robert era o campo de batalha. Robert era inconstante e desleixado, pronto para servir na guerra até o fim, mas incapaz de administrar o reino.


Ned, por sua vez, era um pequeno senhor e pai de família. Um grande senhor para reinar entre aqueles que conhecia, no seu trono em Winterfell. Mas seu reinado como Mão do Rei, longe do seu lugar e da sua verdadeira vocação, foi uma sucessão de fracassos.


O maior erro de Ned e Robert não foi ter traído o destino de seu ovo depondo um rei louco. A desgraça dos dois foi terem traído suas vocações. Ao conquistar Westeros, Robert e Ned destruíram o reino e as próprias vidas.



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