A OUTRA MARGEM DO RIO
Era uma vez um povo resmungão e meio palerma que vivia às margens de um rio. Como este povo nadava no rio, pescava no rio, admirava o rio, fazia amor e concebia seus filhos nas areias da praia do rio e o amava, um grupo de homens que nunca havia entrado no rio ou sequer pisado os pés (muito menos feito amor) nas areias da praia, mas ficava sempre olhando de longe e fazendo anotações sobre o povo e o rio, teve então uma idéia brilhante e positivista: “Os homens e mulheres estão sempre aí na praia e na água, ficam o dia todo no rio, mas, pelo visto, nada entendem do rio. Nunca vi um deles fazendo uma anotação ou lendo um único texto sobre o rio. Isso está errado! Viver no rio, nadar no rio e amar o rio significa não saber nada do rio. Mas nós temos aqui tudo anotadinho, inclusive em francês, e sabemos tudo. É preciso livrar o povo de tamanha ignorância! E logo”.
Foi aí que os iluminados, exaltados, eufóricos – e sobretudo virgens – filósofos começaram o seu plano. Mudar o rio. Mas mudar o rio não deu certo porque era muito grande e indomável e, quando tentavam deixá-lo mais seco, vinha uma chuva e ferrava tudo; quando tentavam deixá-lo mais cheio, vinha uma seca e ferrava tudo. Foi então que mudaram de plano: “A natureza não entende o plano. Toda vez que a gente põe o plano em prática, vem a realidade e fode com tudo. Já que não dá pra mudar o rio, vamos mudar o povo. Vamos fazer com o povo o que a realidade está fazendo com o plano”.
E então começaram a convencer o povo de que viver no rio era até bonzinho, mas daquele jeito estava tudo errado. Que tinha nego com barco maior que o do outro, que uns se molhavam mais do que outros – e que assim era injusto! O povo baixou a cabeça e se sentiu envergonhado, pois nunca havia lido nada em francês. Era preciso mudar de mentalidade, mudar de curso, mudar de margem. Isso! Mudar de margem. Então uma voz bradou sofisticamente:
“Vamos mudar de margem. O futuro está na Outra Margem do Rio!”
O brado, o grito de mudança, veio da profetisa Xuxauí e seus comparsas. E o capitão de nove dedos prontamente se ofereceu para guiar o povo nessa tarefa árdua. Ao que, prontamente, a papagaia vermelha no ombro do capitão respondeu:
“No que se refere a rio, eu acho que... enquanto recurso hidrofluviolático... isto é, que é o rio que contém... é... água... devemos dobrar a meta, aumentar aquilo que se refere a impostos, e fazer um rio com quatro margens”.
Então venderam a idéia ao povo de que o melhor caminho era mudar todo mundo para a Outra Margem do Rio. O povo, palerma e eufórico, comprou a idéia.
Começaram então a construir grandes embarcações (que custavam muito pouco, mas ao mesmo tempo eram muito caras) que iriam transportar todo o povo rumo À Outra Margem. As grandes embarcações eram feitas de paus e pregas – ficando o trabalho dividido da seguinte forma: o povo entregava as pregas para a comitiva do capitão de nove dedos, que, por sua vez, entrava ávida e deslubrificadamente com os paus – mas sempre cantando uma musiquinha do Chico Buarque para aliviar.
O povo se dedicou e trabalhou com a mesma presteza e vigor com que os estudantes universitários não o fazem. E depois de muito sentir aquela dor tão querida e apreciada por estudantes universitários, finalmente veio o dia da partida. As embarcações estavam prontas e o capitão de nove dedos cumpriria a profecia: levar o povo à Outra Margem.
Foram meses de navegação, com naufrágios, desvios, desencontros, mortes e queima de arquivo.
Na verdade o caminho era curto e fácil, mas os homens iluminados, sábios e positivistas nunca haviam entrado num navio e, como não eram vulgares, muito menos num navio em cima de um rio. Embora já tivessem lido tudo sobre isso em francês e feito pós-graduações e tratados acerca do tema – alguns até chegavam a desconfiar que a água do rio molhava, mas era só uma conjectura.
O capitão do navio Santo André foi o primeiro a submergir, coitado. Muitos homens perderam seus bens e muitas mulheres perderam seus homens (porque a taxa de homicídio nos navios era de 32,4 para cada 100.000 navegantes).
Formou-se um comitê para investigar os problemas, mas o capitão de nove dedos disse que não sabia de nada – ao que a papagaia vermelha em seu ombro prontamente respondeu: “No que se refere a não saber de nada, eu tô com ele”.
E depois de muito infortúnio e desventura, o povo chegou - ufa! - na Outra Margem do Rio. E olhou para trás e lembrou dos seus bens perdidos, dos navios submersos, sentiu o cansaço da longa viagem e pensou nos homens e mulheres e crianças engolidas por aquela água barrenta. Com muita vergonha e um pouco de incômodo, pensou em todas as pregas perdidas e desperdiçadas. Todos olharam para si mesmos e viram que os poucos que sobraram estavam sujos, fedidos, abatidos. Suas roupas eram trapos e seus corpos estavam imundos e desgastados. Em cada olhar havia um arremedo de esperança cheio de arrependimento e medo de reconhecer o arrependimento.
Era preciso manter a fé. O pior havia passado: agora era a Glória! Haviam enfim conquistado a Outra Margem. E olharam ao redor e viram, por fim, a Terra Prometida. E, olhando de perto aquele lugar, compreenderam que a viagem não valeu a pena. A Outra Margem era tão feia, suja, sem graça e sem riquezas quanto eles mesmos. Muitos choraram e se arrependeram. Outros reclamaram e começaram a brigar. Os filósofos correram da briga com o pretexto de anotar tudo de uma distância segura.
Mas então, de repente, ao lado da profetisa surgiu um homem com uma longa barba branca e olhar nobre, circunspecto, petulante e desafiador. Na sua pose estava expressa uma nova cultura. E ele disse:
“É a outra margem, seus bobos”.
E então, palermas e resmungões, todos pararam e voltaram a fazer o que sempre souberam fazer.
E aí vocês podem voltar pro primeiro parágrafo.