O CAMINHO PARA A VERDADE É UMA EXPERIÊNCIA
“Meu pai era um arameu errante.”
(Livro do Deuteronômio)
I
Algumas histórias são magníficas e surpreendentes, com finais tão fantásticos que milhares e milhares de pessoas esperam por elas. Mas existem histórias que não são nada além de simples. Mas não se preocupe: tudo o que foi criado nesse mundo foi, uma primeira vez, original e há sempre algo de magnífico mesmo no aparentemente insignificante e até o acontecimento mais ordinário tem, para alguém, sua importância.
Essa é uma dessas histórias simples e talvez você seja o único que a aguardasse.
O ano era 1917. O mês, outubro. Portugal inteiro estava agitado, assim como o homem que esperava por sua carroça na porta da sua casa. Ele a havia alugado. Sua profissão não era esperar carroças e nem mesmo alugá-las, mas algo havia acontecido que movera o país e mudara sua rotina.
Todos os dias aparecia alguém querendo alugar a sua carroça, desejando ir na direção da Cova da Íria. Fazia um mau tempo danado e aquele casal de enganados pagaria caro se sua carroça sofresse algum dano. Enfrentar uma chuva dessas atrás de uma ilusão! Coitados!
Já era noite quando o homem viu a sua carroça retornando; o jovem a guiando e sua esposa, feliz, recostada em seu ombro. Sua égua arrastava os dois lentamente. A chuva havia dado uma trégua. Mas o céu ainda ameaçava cair novamente, então a mulher do dono da carroça resolveu convidar o casal de jovens para passar a noite.
Seu marido aceitou, pois, embora já soubesse tudo o que precisava saber pelo irônico editorial d´O Século naquela manhã, estava tremendamente curioso para saber o que acontecera na Cova da Íria. Não queria esperar pelo novo artigo do senhor Avelino Vieira na manhã seguinte.
– Foi lindo, magnífico! – disse a jovem entrando na casa – Oh, oh, vocês perderam! Exatamente ao meio dia a chuva parou, as nuvens se abriram e o sol dançou diante de nós.
– Algumas pessoas perto de nós disseram ter visto a Sagrada Família dentro do sol quando ele se aproximou de nós. Ele ficou assim. Bem perto de todo mundo. – completou seu marido – E nem notamos, mas assim que a chuva parou, nós, que estávamos completamente encharcados, ficamos todos enxutos. Inexplicavelmente. Assim. – e fez um estalo com os dedos.
– Tolice! Inexplicável é um bando de adultos sendo enganados por três crianças. O mesmo sol da Íria ficou em cima da nossa cabeça e de todo mundo enquanto vocês perdiam seu tempo. – disse, com ironia e um pouco de raiva, mas depois decidiu adotar um tom mais paternal, pois sentira pena dos desiludidos. – Se essa maluquice que vocês dizem ter visto tivesse acontecido, meus filhos, todo o planeta Terra ia deixar de existir. Imagina! O sol fazendo estripulias no céu e a Terra e todo o Sistema Solar permanecendo do mesmo jeito. Coisa mais sem sentido.
Não dizia aquilo para zombar da fé dos outros, coisa que não faria jamais, mas não podia deixar que as asneiras tivessem espaço sob o teto da sua casa. Tampouco dizia aquilo por ser um ateu, um moderno. E nem por falta de fé. Tinha fé. Mas sua fé era pessoal e lógica. Acreditava em Deus até e, de vez em quando, fazias as suas orações durante a noite – sem devoção, é verdade, mas sempre com bastante sono. Esta sua fé não podia fazê-lo aceitar besteiras como um sol que dança, a história de Adão e Eva ou outras baboseiras de beatas, mas era suficiente para convencê-lo de que era um livre-pensador, afinal, todas as manhãs lia o jornal O Século.
II
As discussões sobre o espetáculo do sol continuaram pelos próximos meses por onde quer que o homem fosse. Até que o carisma do cotidiano substituísse a novidade do milagre como a força de atração nos espíritos – como sempre acontece –, pois nem mesmo a Presença de Deus se atreve a usurpar completamente a nossa atenção das pequenices da vida.
E, talvez arrastada pelo fim das discussões que já começavam a entediar, ou talvez para substituir o vazio de assunto, veio uma carta do Oeste. Seu filho fora mortalmente ferido na guerra.
Talvez agora seja a hora de acrescentar em nossa história mais uma simplicidade: aquele homem tivera, além da carroça, da égua, da casa, da esposa e das idéias emprestadas, dois filhos. O primeiro morrera ainda criança, levado pela gripe, restando-lhe apenas o filho mais velho que a guerra agora acabara de lhe roubar.
Aconteceu que sua mulher, não suportando o impacto, adoeceu. O homem fez o que pôde, mas a saúde da esposa só piorava. Foi inevitável ter de chamar o médico no Ourém para consultá-la, mas o tratamento necessário era muito caro. Onde conseguir o dinheiro em tempos tão difíceis?
E assim o homem ficou quase, mas não totalmente, em desespero. De repente, seus passos lhe levaram até a igreja para pedir a Deus por sua esposa.
Aquela era a primeira vez que sua alma se abria a Deus em muitos anos.
Naquela noite, ele se ajoelhou e pediu:
– Senhor, por favor, salvai a minha família. O pouco dela que ainda me resta. Por favor.
Então o inesperado aconteceu. Na manhã seguinte, o mesmo casalzinho do começo da história voltou a sua casa para alugar a carroça.
– Vamos até a azinheira grande agradecer a Deus pela vinda do nosso bebê. Estamos tão contentes!
De início, a ironia daquela notícia causou uma dor em sua esperança, mas, quando outros seguiram o casal de jovens nos dias seguintes, sua própria vida se renovou.
Ao fim de alguns dias já tinha dinheiro para pagar uma parte do tratamento. Sem dúvida o médico aceitaria. Depois trabalharia e pagaria o restante. Deus os abençoaria.
Pegou sua carroça e foi até o médico, que prometeu começar a tratá-la na manhã seguinte.
Voltava para casa contente, satisfeito consigo e com Deus, por tê-lo escutado. Sorria, mas ainda não sabia que, chegando em casa, deixaria de sorrir ao encontrar a esposa na cama, com o terço na mão, sem vida.
Era outubro novamente.
III
Às vezes o rancor, a raiva e a dor são motivações suficientes para continuar. Todas as manhãs esses elementos sacudiam o homem do seu pouco sono e o punham de pé. E continuava a tocar a vida com a certeza de que, um dia, também ela terminaria.
Seu rancor contra Deus por tê-la deixado morrer era uma força imensa na sua alma. Mas a raiva que sentia era contra ele mesmo: por haver sustentado a esperança vazia de que Deus o havia escutado e o ajudaria.
Acontece que, diante da Piedade, mesmo os mais vis dos sentimentos, quando vivido com sinceridade, é uma abertura. Seu rancor e sua fúria eram tão honestos que o despojavam de toda pose.
E esse foi o segundo momento em que sua alma abriu-se a Deus.
IV
E assim passou um ano. Era outubro novamente quando um homem desconhecido apareceu em sua porta. Pensou em expulsá-lo, gritar para que fosse embora, mas, quanto mais o homem se aproximava, mas ele reconhecia que aquele desconhecido deveria estar morto.
Era seu filho.
– Pai.
– Filho... Meu filho... Eu e sua mãe achamos que você tinha morrido.
Então o filho contou sua história.
Foi em La Lys. Havia sido atingido, mas não mortalmente. O medo da morte veio quando percebeu que havia se perdido do seu batalhão. “Não sei por quantos dias vaguei seguindo o rio com medo de ser capturado ou de morrer de fome e exaustão. Minha ferida fedia e minha cabeça girava. Já ia desistindo de viver quando os americanos me encontraram. Mas nem eles acreditavam que eu iria sobreviver. Eu os ouvia falando que aquela ferida, mortalmente infeccionada, custaria minha vida. Até que um dia, no final do mês de setembro, inesperadamente, eu me recuperei”.
– E onde está a mamãe?
– Ela morreu há um ano, meu filho.
Então os dois choraram juntos. O que foi, na verdade, um alívio.
V
Os anos passaram e o rancor, a raiva e a dor foram substituídos pelo retorno à experiência da vida. Era agora o homem que nunca antes havia sido. A perda, a dor e o amor o refizeram.
Seu filho casou-se com uma boa mulher e, em agosto de 1922, sua netinha nascera.
– Pai, vamos dar a ela o nome da mamãe e queremos que o senhor a batize – disse o seu filho.
A experiência da vida o trouxera de volta à felicidade simples, à consciência de si e à gratidão. Aceitara o convite com alegria e resignação.
Três meses depois, após o batizado da neta, pediu ao filho que o deixasse ficar na igreja, que mais tarde iria para casa.
Então ajoelhou e orou:
– Senhor, agora eu sei que o Senhor sentiu a solidão na hora da morte. Que mesmo o Senhor sabe como é ruim esse vazio que nos persegue. Agora eu sei que esse buraco infinito que eu sinto tem onde se acalmar. E eu sei que o Senhor sabe o que sinto. Agora eu sei que até na minha obstinação ignorante residia uma vontade de te encontrar e que todo desejo pelo Infinito já está de alguma forma dentro dele. Mas tudo que sinto de mais forte é o vazio e sua ansiedade. Mesmo diante de ti, do meu filho, da minha nora e da minha neta, sinto falta da minha esposa. Peço perdão por isso, mas como pedi um dia para ter de volta a minha família, eu te peço, me põe de volta ao lado da mulher que eu amo.
E essa foi a terceira vez que a sua alma se abriu a Deus.
VI
Em 1938 fazia vinte anos que a sua esposa se fora e as sombras da destruição se espalhavam novamente pela Europa. O homem sentia o futuro se desgraçando enquanto lia o jornal durante a manhã, mas o seu coração não se angustiava. Estava velho e sabia o que havia vivido. Não tinha com o que se preocupar. A boa memória da experiência e da história é, na velhice, a casa da sabedoria. Restava entregar tudo nas mãos divinas, as únicas que sabem fazer do nosso mal uma história a ser contada ou uma possibilidade de redenção. Agora a sua alma vivia quase que constantemente aberta à vida, à perspectiva da morte, à esperança e a Deus e ele não se preocupava. Estava velho.
Passavam por ali um homem e uma mulher, rodeados por seus filhos, alguns adolescentes, crescidos; outros, simples e pequeninas crianças barulhentas. E os dois acenaram para o homem que por duas vezes lhe alugara uma carroça.
Sentado em sua cadeira em frente à casa, o homem acenou de volta. Então começou a chover molhando o homem, a mulher, os jovens e as crianças. E choveu por toda a manhã, mas ao meio dia o sol abriu as nuvens e iluminou a terra.
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