AQUELE DIA - um conto de natal
"Porque a mão, desejosa e tosca, que O tentara reter, ainda que leve, desfez-se ao toque, assim como uma vez tocado o sopro se desfaz a avara, a dura contração do peito ansiado..."
(O anjo anunciador, Bruno Tolentino)
Foi inevitável não se constranger quando Helena se apoiou sobre a mesa para avisar que o Sr. André a estava chamando para uma reunião. A visão inescapável do decote de Helena em seu vestido vermelho era atraente, mas Cecília tentou encabuladamente fitar os olhos da colega durante a breve conversa.
Cecília nunca havia sido chamada para a sala do Sr. André. Helena, ao contrário, estava sempre lá. Ela parecia estar o tempo todo em toda parte e os homens pareciam estar sempre ao seu redor. Helena era bonita e sedutora. E, oh, como os homens são tolos diante de uma mulher sedutora! De tudo o que Cecília havia aprendido na empresa, isso era o mais certo: Helena sabia atrair os homens e conseguir o que queria. E, para isto, ela nem mesmo precisava dar algo em troca. Mimos, promoções, presentinhos, favores, ajuda. Quanto mais eles a desejavam, mais Helena possuía.
Mas Cecília, embora não fosse necessariamente tímida, possuía aquele inesgotável apego ao seu espaço, sua rotina, seu cantinho. No entanto, pressentia que Helena reconhecia em seu olhar um desejo, quase uma súplica, para que a ajudasse a ser como ela era.
Enquanto isso, Cecília ia passando despercebida, sem charme, sem um desafio nos gestos, na roupa, na forma de olhar ou sorrir que atraísse os homens e a elevasse. Cecília tinha grandes sonhos e uma maior apatia.
Talvez hoje, quem sabe, na sala do Sr. André, eu não consiga fazer com que ele olhe pra mim e considere me ajudar, me dar um aumento, uma promoção. Meu pai ficaria tão feliz se eu chegasse em casa com a notícia de que teríamos um pouco mais de dinheiro. Timidamente, abriu a porta e perguntou se podia entrar. André estava em pé, segurando um copo. Seu sorriso era largo e amigável. Ele ofereceu uma poltrona. A vergonha de fazer algo embaraçoso a fez praticamente correr e se atirar na cadeira. Sentiu-se tola. Mas ele sorriu novamente e se virou para encher o copo com alguma bebida.
O vestido que Cecília usava naquela manhã era humilde e simples; não tinha a extravagância do corte ou as cores que atraiam o olhar no vestido da Helena. Mesmo assim, enquanto André ainda estava de costas enchendo o seu copo, Cecília decidiu suspendê-lo um pouco acima dos joelhos. E um pouco mais, só pra garantir. Ela precisava mudar. Deixar de ser tosca, caipira e apagada. Um homem como André, elegante e trabalhador, poderia mudar sua vida.
Talvez se ela conseguir manter esse desejo suspenso e constante com o qual a Helena hipnotizava os homens, Cecília poderia ter um pouco mais de atenção e destaque.
André se sentou na sua frente segurando o copo de whisky. Diziam que ele estava sempre bebendo, que arruinaria os negócios do pai. Mas Cecília se impressionava por sua postura firme, atraente e engajada quando passava por sua mesa todas as manhãs.
– Cecília, não é? Helena me falou muito bem de você. Do bom trabalho que tem feito, sabe? E você parece legal. Tem um jeito de boa menina – e Cecília percebeu que, finalmente, a idéia de levantar o vestido não tinha sido tão má. – Então, Cecília, tenho duas propostas pra te fazer. Para o primeiro eu não aceito não como resposta. Sobre o segundo, te deixo pensar.
André falava sem esperar resposta. Sentou-se e inclinou o corpo em direção a Cecília com um sorriso simpático e desafiador.
– É o seguinte: hoje à noite teremos uma confraternização de natal em minha casa, e gostaria que você fosse. A Helena também vai, então vocês podem ir juntas. Ah, e aí você vai conhecer meu pai e poder falar um pouco do seu trabalho aqui. Ele ama saber o que acontece na empresa.
Cecília sorriu. Decidiu cruzar as pernas e inclinar um pouco o corpo, mas não sabia se aqueles gestos teriam os mesmos efeitos que tinham quando executados pela Helena. Cruzou as pernas com os olhos baixos e, quando os levantou, percebeu que André olhava para elas.
– Vou sim, Seu André. Sem falta.
– Nada de Seu André. Me chame de André, garota. O segundo é o seguinte: tenho uma reunião para o dia 2 e a Helena deveria me ajudar, mas ela me disse que vai ter que viajar pra ficar com a família e nessa época quase todo mundo viaja também e o pobre aqui tem que ficar pra trabalhar. E tem o feriado, trânsito. Não posso contar com muita gente. Isso aqui praticamente fica deserto. Você poderia me ajudar?
– Claro, Seu André. Desculpa. Claro, claro. Posso sim. Eu chego às 8 e saio às 15. Dia 2 não é feriado. Só dia 1.
– Sim, mas você sabe que não vamos abrir no dia 2.
– Sim – ela havia esquecido – Mas eu vou tá aqui, sim. Com todo prazer. – Felizmente ela percebeu que era hora de calar, por mais que a timidez a impelisse a uma enxurrada de frases.
– Obrigado, Cecília.
E então ela ficou olhando para ele, sem saber o que fazer. Será que devo sair agora? Sim, devo sair.
– Até mais, Seu André.
Cecília se levantou e ele a segurou pelo braço antes que ela pudesse ter qualquer reação.
– Espere. Você sabe que esse ano as coisas não estão tão boas, mas eu não posso deixar de agradecer os meus bons funcionários.
Ele foi até sua escrivaninha e, de uma gaveta, retirou um envelope.
- Isso é uma pequena lembrança de natal e um pagamento adiantado pelo trabalho extra do dia 2. Obrigado, moça.
Então ele voltou, entregou o envelope para Cecília e, com dois beijinhos, a despediu.
***
No caminho para casa, Cecília não conseguia segurar sua felicidade. Os R$ 200,00 dentro do envelope eram um alívio! Desceria três pontos antes do seu, passaria na confeitaria e compraria uma torta e levaria para casa. Daria tempo de ver a irmãzinha lambuzada de torta e o sorriso do pai antes de ir para a confraternização. Ela fez as contas e definiu que daria tempo de ir à missa com o pai antes da confraternização. Mentalmente, ela vivia aquela noite como uma das melhores da sua vida.
A confeitaria brilhava com as luzes de natal e as guloseimas coloridas. Cecília recheou seus sonhos com cada um daqueles doces e tortas. Entrou e foi escolher a torta que levaria. Mas, olhando os preços, seus sonhos foram adquirindo algumas camadas de rigidez e realismo. Escolheu uma pequena torta de nozes e chocolate que custava R$ 46,00. Meu pai vai amar e a Eliza vai sorrir e me abraçar e beijar a cada pedacinho que ela comer.
No caminho para, na porta da igreja, uma garotinha apareceu na sua frente:
– Moça, a senhora pode me dar uma ajuda?
A menininha tinha olhos grandes e brilhantes e com eles a encarava com uma mãozinha suplicante estendida. Cecília chegou a mexer na bolsa em busca de algumas moedas, mas, quando ouviu a voz de uma mulher mais velha também lhe pedindo dinheiro, aquilo a enraiveceu. Não é possível que as pessoas se aproveitem de uma criança em pleno natal. Conteve a mão e seguiu seu caminho. Que raiva!
Acelerando o passo, ela correu para casa.
***
- Desculpa, pai, mas não vai dar para ir para a missa. A Helena já está vindo me buscar e eu preciso correr.
Por que ele não poderia ficar feliz apenas com a torta? Por que ele tem de falar, falar, falar e fazer tantas perguntas? Meu Deus! Todos os anos ela fazia as mesmas coisas no natal. Naquele dia, em um único dia na vida toda, ela não poderia fazer algo diferente? E todos os dias ela não fazia tudo por aqueles dois?
Foi confusa e com raiva que ela bateu a porta do carro quando a Helena chegou para buscá-la.
– Eita, não quebra a porra do meu carro! O que você tem?
– Nada. Desculpa.
E sua voz já não era rude, mas servil. Não queria desapontar a amiga, ainda mais depois do favor que ela estava lhe fazendo. Disse “desculpa” mais uma vez e agradeceu por Helena ter ido buscá-la.
– Hey, talvez não dê pra te trazer de volta, tá? Eu não sei como eu vou tá depois da festa e nem o que vou fazer depois, mas se você for esperta, você também faz alguma coisa, amiga. Eu amei seu vestido.
Cecília sorriu e disse “tudo bem”, mas sentiu vontade de chorar. E agora, como eu vou voltar pra casa? Se eu fosse esperta como Helena, eu também ia ter um carro e ia saber dirigir. Eu acho. Sei lá. Virou o rosto e ficou olhando pela janela.
Mas o tormento acabou quando chegaram à casa do chefe. Nossa! Aquela casa era enorme e cheia de decorações. As luzinhas piscavam por todo lado e Cecília estava encantada.
Lá dentro as pessoas conversavam, sorriam e bebiam. O Sr. André foi o primeiro a recebê-las. “Sejam bem vindas”. Ele carregava duas taças em uma mão e um cesto na outra.
– Cecília, você pode me ajudar a pegar algumas coisas lá em baixo? Helena, fique a vontade. À meia noite as crianças vão fazer um coral. Vai ser uma beleza. Meu filho vai cantar. Você já conhece ele, né?
– Claro. Ele é um fofo, André. Cadê ele?
– Não sei. Da última vez que o vi, ele tava perto da árvore com a mãe.
– Tá. Tchau. Vou dar uma volta por aí.
Helena sorriu para os dois e saiu. Cecília olhou para ela encantada com todas as graças e truques que a amiga possuía e mais uma vez quis ser como ela.
– Então, vamos? Eu preciso pegar uns vinhos lá embaixo e uns pães na cozinha e já estou todo ocupado. – Seu sorriso pontuava cada palavra. Finalmente a noite começou a fazer sentido.
– Oh, Seu André. Desculpa. Vamos sim.
Juntos, desceram uma pequena escada até o térreo. Cecília nunca havia visto uma casa tão bonita! A cada passo ela ficava mais admirada e, tinha de admitir, seu coração se enchia de inveja dos que tinham o que ela não tinha. Em um dos corredores, lembrou-se da menininha que lhe pedira esmolas e pensou: aquela garota nunca vai ter algo assim.
– Eu não sabia que o senhor era casado, Seu André. – Cecília achou que seria melhor puxar um assunto e, sendo assim, seria melhor satisfazer sua curiosidade.
– Como assim?
– A Helena disse que você tem um filho.
– Sim, Ceci. Mas não sou casado, não. Esse filho foi só um acidente. Gosto muito do meu filho e tal, mas não foi algo que eu esperava. Ele já tem 5 anos. – e depois de uma pausa, concluiu: você está linda, Ceci.
André abriu a porta de um cômodo onde havia três grandes adegas elétricas. Quando entraram, seu braço já estava ao redor da sua cintura. Cecília pensou no que Helena estaria fazendo lá em cima e achou que estava bem melhor do que a amiga.
– Você gosta de vinho, Ceci? Qual tipo você prefere?
Cecília começou a gaguejar algo, mas felizmente ele não esperou ela responder. Ele nunca esperava uma resposta. Cecília sentiu o cheiro forte do seu perfume.
André abriu uma adega e pôs dois vinhos nas mãos dela. Sem parar de sorrir, ele manteve as mãos em seus pulsos e, beijando seu pescoço, a encostou contra uma das adegas.
De repente, aquilo que Cecília sonhara estava acontecendo. De repente, Cecília sabia que não queria aquilo. Talvez ela quisesse o carisma da Helena e o poder que ela possuía; talvez ela quisesse uma vida melhor, mas não, definitivamente não era aquilo que ela queria.
“Não, André” foi tudo o que ela conseguiu dizer. Mas ele não parece ter ouvido. Então ela tentou se esquivar do seu corpo, mas as mãos do patrão agora apertavam com força os seus pulsos e as garrafas de vinhos em suas mãos começavam a pesar.
E, embora ela continuasse a se negar com a voz e os gestos, seu corpo e o do chefe estavam agora apertados contra uma das adegas. A sua boca se esfregava em seu rosto, tentando beijá-la, soprando um hálito quente de vinho. Suas mãos eram muito fortes e prendia as dela sem muito esforço. Tudo aconteceu muito rápido. Quando as mãos dele desceram para tocá-la, a garrafa foi quebrada nas mãos de Cecília. Sem tremer ou pensar, três golpes enfiaram o vidro partido na coxa de André. Foi a raiva que sentiu daquele homem e de si mesma por tudo o que houvera desejado que moveu sua mão. Uma forte ira de si e daquele estranho a salvou.
Encolhendo-se de dor e em estranhos espasmos, André caiu. E Cecília aproveitou para afastar-se. Ela olhou para o homem e para o rio de sangue que fluía de sua coxa. Olhou para as suas mãos e viu o tom escuro do sangue e vinho por toda parte. Então a ira deu lugar a uma piedade confusa pela condição dos dois. E embora a sua mão tenha se estendido como se buscasse ajudá-lo, seu corpo não se moveu, pois a piedade, ainda que tenha amenizado o terror, foi incapaz de suplantar o nojo.
Cecília não sabia o que fazer. Tudo nela queria chorar, mas uma parte desejava ardentemente sorrir como um louco.
E foi aí que chegou a música.
O coral enfim começou a cantar. A voz das crianças chegava até o térreo com ternura e encanto. Cecília caiu ao chão, chorando, mas em seu choro havia um pouco de riso. Suas mãos ensanguentadas sujavam seu rosto. E a voz angelical das crianças crescia em seus ouvidos e o seu coração se enchia de arrependimento, temor e um espanto encantado.
Finalmente era meia noite. Era, enfim, natal - o mais incompreensível dos dias.